12.01.2008

Entendimento




E se não rasgo, o coração em pânico, o que nos enlaça, fios, fumaça,

o que zomba de sermos dois e age e ata, e se não me meto

para além do que fora, se persisto em deixar acontecer

(e não é por lassidão, por fraqueza, por negligência), se evito

tocar no assunto, e tomo outro gole e penso na fragilidade como uma flor ou tempo, na fortaleza dos oceanos e das estrelas

(essas coisas raras de todos e ninguém), e se resolvo

fechar os olhos e ouso imaginar, mas logo desisto, o fim de tudo,

e me revolvo e me abraço para não deixar fugir o que de ti

há em mim disperso, e se cuido e trato e passo ferro

para untar tecidos com fogo, veja bem,

se isso faço (e não rasgo), faço-o somente porque sei

o que entre nós nos liga e se esconde

(brinquedo de um vermelho diabo): o frágil toque

Caminho de rio




Este caminho




Felicidade

é o mundo morrendo doce

e eu salgado.




11.09.2008

As Mulheres de Italo

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I

Nala

Não se prenda a mim! Faça-te livre. – disse Nala.
Tu não me amas? - Perguntou ele.
Não, eu não te amo, apenas te respiro. - Respondeu ela.
Então já me basta. - Argumentou ele. - Se teu desejo é que eu parta para longe, por ti, irei.
Na verdade não é que quero que partas. Mas tu tens que partir. Não vês que contigo eu sofro? – Insistiu Nala.
Contudo disseste-me uma vez que sem mim não viverias. Fingias então? Interrogou ele pesadamente.
Não, não fingia. Apenas o calor de tua pele agora queima a minha, ficou quente demais. Não posso te possuir porque te destruo, não posso viver sem ti porque destruo a mim. Perdoa-me. - Com os olhos cheios continuou - Façamos o seguinte: finges que me abandonas, que não me queres por perto. Finges que vás embora e levas contigo o meu medo, este peso que me esmaga. Torna-te difícil. Não, mais que isto, torna-te impossível e eu te farei meu eterno amado (é que às vezes a promessa da chegada encanta mais que o próprio encontro). Desta forma então, fingindo que estou distante de ti, poderei te amar de novo e a minha pele terá novamente a temperatura adequada para que eu não mais me queime nem a ti.


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II

Gaiara

Gaiara levanta-se sempre na mesma hora. Come sempre as mesmas coisas no café da manhã. Pega sempre o mesmo caminho para o trabalho. Senta-se sempre na mesma cadeira. Conversa sempre com as mesmas pessoas. Lancha sempre a mesma coisa. Faz sempre o mesmo caminho de volta para casa. Almoça sempre no mesmo prato. Assiste sempre o mesmo programa de televisão, sentada no mesmo sofá. Dá uma volta no bairro sempre na mesma hora, gastando sempre o mesmo tempo. Canta sempre a mesma música quando está no banheiro. Janta sempre a mesma hora, comendo sempre a mesma comida. Vai dormir sempre do mesmo jeito, na hora de sempre.
Desde quando ela é assim ninguém sabe. Os que a conhecem já a conheceram assim. O que a levou ser assim ninguém sabe. Podem chamá-la de conservadora ou dizer que ela busca segurança, que é puro conformismo ou automatismo, que é mais fácil viver assim ou ainda que seja por pura convenção, não se sabe, ninguém sabe.
É isto, o que chama atenção na vida de Gaiara é a repetição. Nada muda na sua vida. Tanto faz se você a conheceu ontem, hoje ou amanhã, sempre a verá do mesmo jeito, sem novidades, nada de novo para dizer, com o cabelo penteado sempre para o mesmo lado, a mesma cor de batom. Se você conversar com ela ontem, hoje ou amanhã, ouvirá dela os mesmos assuntos, ela vai descrever sempre os mesmos lugares que conheceu, comentará sempre sobre os mesmos filmes que assistiu, recomendará sempre os mesmos livros, trará no coração sempre as mesmas mágoas ou as mesmas alegrias, as suas queixas são sempre as mesmas, assim como seus sonhos e esperanças que nunca se renovam.
Se você gravar um dialogo com Gaiara e depois de algum tempo voltar a gravar um outro dialogo com ela perceberá, ao ouvir as duas gravações, que cada palavra, cada frase, o tom a voz são idênticos. Gaiara é uma mulher que vive a repetir-se mecanicamente como uma gravação. É como as coisas de agora fossem para sempre.

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III

Auda

Auda tem filhos, bons filhos. Um marido que a ama, bom homem. A casa de Auda é boa de morar. Seu marido lhe dar dinheiro para gastar. Às vezes saem, vão a barzinhos, saem com os amigos, passeiam na praia com os filhos. Se alguém perguntar a Auda como é sua vida ela dirá que é uma vida perfeita.
Mas Auda, mesmo sorridente, mesmo fazendo algumas coisas que gosta, mesmo cuidando da casa, mesmo brincando com as crianças, mesmo com seu marido, que às vezes tem ciúmes, sente que algo falta. Faltam coisas que ela não revela a ninguém, mesmo se lá no fundo ela deseje que isso venha a público, que todos saibam, mas que ela prefere não revelar por medo.
Entretanto, basta um olhar mais atento para perceber que por trás do seu sorriso lateja uma série de desejos, vontades e sonhos que ela sufoca sem saber como, que moí e remoí em sua alma e intestinos.
Auda às vezes se pega pensando, se imagina transando a noite numa praia, em um carro, em uma estrada deserta, sonha pular de pára-quedas, andar de carro em alta velocidade em uma trilha mata adentro, dançar em boates quase nua e ser desejada, poder receber qualquer um a qualquer hora em sua casa... E mais.
Às vezes ela se sente burra. Procura sempre agir com bom senso, mas o mundo se encontra lá fora e todas as possibilidades de uma vida. Dentro dela habita uma Auda aventureira que ninguém conhece, nem marido nem filhos, que deseja fugir e experimentar a vida.

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IV

Calana

O tesouro mais precioso de Calana é um jarro no qual ela guarda outros tesouros – uma foto de um antigo namorado, uma pequena esmeralda, um postal que uma velha amiga lhe enviou, um lenço amarelado pelo tempo dado por seu falecido pai e uma porção de coisinhas miúdas que ela foi juntando com o tempo. Assim, quem quiser saber quem é Calana, basta olhar o que ela guardou em seu jarro.
Ela dá a vida por aquele jarro, o trata quase como um deus. Não existe em sua vida espaço para mais nada. Vive os dias a contemplá-lo. Não fala de outra coisa, não pensa em outra coisa. Até que é compreensivo seu apego, quem já não se apegou a algum jarro na vida?
Mas aconteceu que certo dia, ninguém sabe como e quem sabe não diz, o jarro quebrou-se em mil pedaços. Calana chorou. Tentou juntar todos os pedaços. Tentou colar todos os pedaços...
Alguém lhe trouxe um novo no qual poderia guardar não só os antigos tesouros de sua vida como os novos, acrescentando coisas novas em sua vida. Ela recusou. E quem quer que deseje oferecer um jarro novo ela amaldiçoa, expulsa.
Hoje ela vive como se um milagre fosse acontecer e o jarro voltasse a ser como antes ou até mais bonito. Não querendo perceber que o jarro nunca mais será o mesmo, mesmo se colado, o colado já não tem o mesmo brilho.